( Iara e Marlene Fortuna )

… Foi uma história de amor, exemplo e virtude. O pai: José Fortuna, as filhas: Iara e Marlene. E assim prossegue a saga… Observadoras vivíamos, atentas, a seu processo de criação. Mas como escrevia aquele homem! Uma cachoeira de idéias plasmava-se em versos. Quanta inspiração! Tudo, tudo era motivo para o afloramento de sua inspiração: uma flor, uma estrela, a terra molhada, o mar, um presidiário, uma pedra, a saudade…
A obra literária de nosso pai, seja completada de poemas, de prosa, de peças de teatro, serviu de exemplo maior para o desenvolvimento de nossa sensibilidade, de nossa veia artística, de nossa personalidade esculpida com dignidade e caráter.
Um dia, o farol vermelho parou nosso carro em frente a Penitenciária do Estado. Papai fixava seu olhar iluminado em um preso que acenava, das vidraças quebradas da cela, um esquisito movimento de mãos! Até parecia um desencantado tchau! Papai refletiu na hora e expressou para nós seus pensamentos: mas que tchau é este? Para quem? Para o tudo? Para o nada? Para os automóveis? Para ele mesmo? Para Deus? Um apelo de súplica? Coincidentemente o prisioneiro acenava para um poeta que, sabendo ler para além das grades, pediu-nos um papel e uma caneta. Parou o carro e continuando a mirar o gesto, criou uma história sintetizada em versos e intitulada: O Ipê e o Prisioneiro. Do vulcão imaginário de nosso pai, saiu a fatalidade de um homem que, apaixonado, assassinou a esposa por adultério. Da janela da cela avistou um jardineiro que plantou um ipê. Enquanto atrás das grades ele sofria, mirava o ipê que crescia… A árvore florida, era beijada, todos os dias, pela aurora do sol, pela chuva fresca, pelo vento manso e pelas estrelas, mas, contradizia-se com o detento sem jardins floridos, sem noites enluaradas e sem dias de aurora. Dialogava com o ipê, em um discurso qualificado de grandeza poética: “… vejo em seu tronco cipó parasita te abraçando forte, enquanto te abraça suga a tua seiva te levando a morte, assim foi comigo, ela me abraçava depois me traía, por isso a matei e agora só tenho sua companhia”.
Esta homenagem foi escrita há quatro mãos. Mas, permito-me contar uma passagem de minha vida. Há muitos anos, presenciei precocemente e com imensa nitidez, a dimensão do poeta: eu havia me separado do primeiro amor, não conseguia sair da cama, tamanha a tristeza. Papai chegou pela manhã, bem cedinho e me perguntou: “… e daí Marlene minha?”, eu lhe respondi aos prantos: “… Ah meu pai, que saudadona!…”. Para mim, era a única palavra que encontrei na hora e que podia expressar a extensão de minha dor. Para ele, desta palavra, apenas uma palavra, surgiu imediata inspiração:
“Saudadona, é mais do que saudade, é a grande dor que invade, o coração da gente
Vem de longe, de um tempo esquecido, passado refletido, no espelho do presente
São raízes, no chão dos desenganos, brotadas pelos anos, de um adeus para sempre
Ela chega, quietinha sem alarde, quando o sol da tarde, desmaia no poente
Saudadona, dor sentida, escondida, no meu peito
Saudadona, dor ingrata, porque me mata, desse jeito
Saudadona, é uma saudade grande, é nuvem que se expande, no céu de meu destino Sombreando, o chão de minha mágoa, onde perdido vaga meu coração menino
Saudadona, de regressar no tempo, e ver por um momento, meus rastros nas estradas
Ver florindo, da vida a primavera, onde a riqueza era, o ter de não ter nada”.

Hoje ele é estrela! Brilhante, podemos avistá-lo no alto!
Obrigada pai, por ter-nos legado um pouco de sua emoção artística e ensinar-nos a estendê-la para a vida. Obrigada por ter-nos mostrado uma visão pluri-dimensional do humano – enxergá-lo, para além de onde nossos frágeis sentidos alcançam. Obrigada nosso pai José Fortuna, por exemplos sólidos de integridade, honestidade, humildade e, durante o tempo em que estivemos juntos, foi um encontro cheio de amor!

Que saudadona pai!…

IARA E MARLENE FORTUNA